Quem acompanha o cenário de filmes de terror sabe que o gênero está passando por um grande processo de mutação nos últimos anos. A nova geração de diretores, que inclui autores negros e mulheres, está apresentando novas percepções do medo e horror para o público que estava consumindo um tipo de cinema que estava ficando enfadonho, repetitivo e até mesmo sem identidade durante os anos 2000. Corrente do Mal, lançado em 2014, talvez nem seja o melhor, mas certamente é o filme que melhor sintetiza esse novo momento ao cenário de terror.
A influência é tanta, que dois lançamentos de 2022, “Noites Brutais” e “Sorria” bebem bastante do longa dirigido por David Robert Mitchell em 2014. Mas aí você deve se perguntar “o quê esse filme tem de diferente?” Bom, eu explico:
As crises identitárias do terror
Por muitos anos, sobretudo na década de 1980, o gênero tinha dois grandes motes parar apavorar seu público: um assassino com visual marcante e cenas fortes de gore. Sim, estou falando de Michael Myers, Jason Voorhees e companhia. Assim como também cito cenas como o alien saindo da barriga de John Hurt, em “Alien – O 8.º Passageiro”.
Após anos de repetições e queda de qualidade dos filmes slashers, esses assassinos deixaram de ser assustadores e passaram, até mesmo, se tornarem cômicos. Foi então que aconteceu a primeira crise de identidade do terror nos anos, que permeou boa parte da década de 1990.
Eis que Wes Craven, criador de Freddy Krueger, dirigiu um novo clássico: “Pânico”, em 1996. Mas Pânico só funcionou justamente por conta dessa crise, visto que se trata de um longa metalinguístico, que brinca justamente com os clichês do gênero e as “regras” desse tipo de filme.

Consequentemente com o sucesso, vieram as continuações – boas, embora com menos impacto que o primeiro – e cópias menos inspiradas, como “Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado”, e o terror passou por anos sombrios – de uma maneira verdadeiramente negativa.
Alguns podem dizer que a “onda” do terror nos anos 2000 foi o body horror – subgênero que apresenta intencionalmente violações gráficas ou psicologicamente perturbadoras do corpo humano – mas esses filmes não são tão numerosos assim e nem tão populares quanto os slashers.
O terror psicológico
Chegamos na década 2010 e foi nela que Corrente do Mal foi lançada. Para quem não conhece, o filme tem uma premissa simples: Jay (Maika Monroe) é uma menina de 19 anos e sua vida vai pro abismo após ela transar com um rapaz (Hugh) que manda a real após o sexo: a transa transmitiu a ela uma maldição, que consiste em uma entidade perseguidora. A única coisa que a entidade faz é ir atrás do amaldiçoado para matá-lo.

A entidade não tem pressa ou rosto: ela anda lentamente na direção de seu alvo, podendo parecer uma versão distorcida de um amigo da vítima ou simplesmente uma velha que saiu do manicômio. Para se livrar dela, basta transar com outra pessoa e passar o problema a frente. Caso a pessoa seja morta, o alvo vira a vítima anterior.
O terror metafórico
Embora simples, a metáfora das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e peso da sexualidade na vida de adolescentes, foi uma mudança muito bem-vinda ao horror. Afinal, engravidar ou pegar uma IST é um terror real para muitos jovens. Muito maior que ser perseguido um assassino mascarado.
Além de tudo, filme imprimi uma mostra do comportamento da Geração Y: os jovens assistem filmes de terror velhos, ouvem músicas dos anos 1980 – uma bela desculpa para a trilha sonora excelente do filme, cheia de sintetizadores e sons minimalistas – e se drogam sem excessos.
Primor técnico
O terror e seus fãs, por muito tempo, não tinham vergonha de “filmes ruins”. Quando digo ruim, não falo de histórias, personagens, mas sim da técnica cinematográfica. Você pode ser fã de Sexta-Feira 13, mas tão difícil quanto matar Jason é encontrar boas fotografias e cenas bem planejadas nos filmes dessa longeva série.
Pois bem, Corrente do Mal embarca no que o cinema indie – não terror – já vinha fazendo cinematograficamente. Isso quer dizer, uma fotografia banhada de luz para demarcar o sonho americano de subúrbio – o filme se passa em Detroid -, os travelings laterais e os zooms tentando gerar angústia, gravidade. Nada de câmeras tremidas, cenas difíceis de entender em ambientes muito escuros. Esse polimento, que hoje é comum, era praticamente inédito em 2014.
Quentin Tarantino
Mesmo em com tantas novidades, Corrente do Mal ainda é um filme indie. Para furar sua bolha, o longa contou com elogios – e um puxão de orelha – de Quentin Tarantino, um dos principais diretores da atualidade.
“Foi a melhor premissa que eu vi em um filme de terror em um longo, longo, longo tempo. É um daqueles filmes tão bons que você fica bravo por ele não ter conseguido ser maravilhoso. O diretor poderia ter mantido a mitologia, porque ela se quebra ao longo da história”, opinou o cineasta.
A declaração de Tarantino fez muita gente ir atrás do longa, que em pouco tempo se tornou um hit indie.
Os filhos de Corrente do Mal
Como já citado acima, os fatores psicológicos, traumas reais e sociais se tornaram a principal fonte dos filmes de terror nos últimos anos. Junto delas esses fatores técnicos, cenas bem elaboradas e fotografia que ajude na narrativa. No ano seguinte tivemos “A Bruxa”, de Robert Eggers, que também dirigiu “O Farol”, dois longas que exploram a psiquê de seus protagonistas, a loucura e até mesmo questões sociais, sempre dialogando com o sobrenatural.
“Corra!” e “Nós” de Jordan Peele também são dois ótimos exemplos de terror social aliado ao sobrenatural. Poucas coisas são tão assustadoras para um jovem negro do que ter que se provar para os pais de sua namorada branca. Assim como é um horror ver uma família preta bem-sucedida perder tudo e ser substituída.
Nesse ano tivemos dois filmes ainda mais próximos de Corrente do Mal. O primeiro, Sorria, também existe uma maldição, o mal está a espreita. Aqui, a metáfora são com problemas psíquicos, mas o modus operandi do mal é o mesmo. Já em Noites Brutais, o terror não se dá – pelo menos, inicialmente – por um mostro, maldição ou entidade, mas sim pela situação de uma mulher negra estar sozinha em uma cidade, sem ter onde dormir e sua única esperança é um homem desconhecido. Por mais que ele pareça bem respeitoso com ela, tanto a protagonista, quanto o público, esperam pelo pior.
E aí, já assistiu algum desses filmes? Você prefere um terror clássico ou os atuais filmes de horror psicológico? Deixe seu comentário!